Pragmatismo eleitoral

Votos fazem gestores da situação. Mudanças estruturais se fazem com armas

Feminismo pra macho ver

Pseudo-ativistas do Femen: discurso elas não têm, mas pose...

A exceção que confirma a regra

A polícia brasileira é sádica, psicótica e trabalha a serviço da bárbarie

Kassab é fresquinho porque vende mais

O abandono de São Paulo é só uma questão de ponto de vista

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Voto adapta a situação, mas não promove revoluções


O fracasso do projeto neoliberal nos dez anos que seguiram a queda do muro de Berlim criou um fenômeno curioso, que foi a centralização da esquerda. Depois que as teorias do fim da história se mostraram infundadas, com a continuidade da luta de classes em um mundo pós-guerra fria, o próprio capital começou a enxergar a antiga esquerda marxista como uma alternativa factível ao neoliberalismo exacerbado.

A esquerda, descrente do seu antigo potencial revolucionário, mas ainda próxima de suas bases marxistas (sindicatos, movimentos sociais etc.) assumiu o papel de gestora, entre o capital internacional e os movimentos sociais. Isso aconteceu com o Partido Socialista aqui na França, aconteceu com o PT no Brasil. Assim, deslegitimou-se a luta armada, as agressões contra o capital internacional, o próprio direito soberano de os povos defenderem seu território de ameaças externas, bélicas ou econômicas.

Qualquer afronta contra o patrimônio ficou inaceitável. Entramos na era das manifestações pacíficas, na era em que destruir laboratório da Monsanto não é considerado legítimo - mesmo que seu milho transgênico cause câncer em 100% dos ratos em que é testado. Morreu o radicalismo, morreram as mudanças estruturais. Nos últimos anos, o único país que sofreu mudanças estruturais foi a Venezuela, onde a esquerda - criticável ou não - não assumiu o papel de gestora do conflito de classes em nome da soberania do capital.

O sistema pseudo-democrático em que vivemos, este sistema em que o Estado amacia a sociedade para a plena aplicação dos interesses do capital, este sistema não prevê mudanças estruturais.

Se vocês querem educação de qualidade para todos, tem que começar a destruir universidade privada, tem que pensar numa via mais agressiva de atuação. Isso não virá, em hipótese alguma, do poder público. Do poder público, só podemos esperar paliativos. Eu vou votar nos melhores paliativos: prouni (falar que o prouni só beneficia dono de faculdade vagabunda é um atestado de quem não põe um pé pra fora de sua redoma burguesa), cotas, bolsa-família, bilhete único (com Haddad, mensal). Se for pra pensar em mudanças estruturais, aí tenho que tocar fogo nas coisas - elas não virão do governo, na forma como ele está configurado.

Vou de Haddad não porque tenho fantasias de reorganização democrática mas porque, apesar de todos os podres do PT no governo, foi ele o partido que exerceu o poder de forma mais plural e democrática. Revolução se faz com armas. O voto elege gestores da situação estabelecida. Alguns agravam a situação, outros a tornam mais suportável. Foi o caso da gestão Erundina, que pela primeira vez encarou o problema da moradia em São Paulo e estabeleceu o primeiro plano organizado de transporte público metropolitano. Foi o caso da gestão Marta Suplicy, que criou os Céus e o Bilhete Único. Foi o caso da gestão Haddad, que criou o ProUni no Governo Federal, foi o caso da gestão Lula, que passou ao largo da crise do capital internacional pelo fortalecimento das nossas divisas; o Governo Lula, que deu o que comer a quem não tinha; o governo Lula que estabeleceu o Brasil como um ator sério e importante no plano internacional.

O Mensalão é vergonhoso, mas é um grão de areia. E é um grão de areia que não se encontra só na praia do PT, mas neste arquipélago que é a política brasileira. Acho que se tivéssemos vasculhado antes, teríamos descoberto o Mensalão na Primeira República... Quiçá antes. Ou nos esquecemos que Fernão Carrilho pagou todos os senhores de engenho de Pernambuco para aprovar a contratação dos bandeirantes de Domingos Jorge Velho para desbaratar o Quilombo dos Palmares, em 1690? Alias, tem pouco tempo que o Fernão Carrilho de hoje, o Geraldo Alckmin, convocou os bandeirantes de hoje, a Tropa de Choque da Polícia Militar, para desbaratar o quilombo do Pinheirinho, não é? Do mesmo jeito que outro Fernão Carrilho, inventado por José Serra, soltou seus bandeirantes contra a favela Moinho, a favor da especulação imobiliária.

Eu prefiro votar em alguém que, se não bate de frente com a Metrópole de hoje em dia, o capital internacional, pelo menos não solta os cachorros sobre os descendentes de escravos. Como eu.

Imagem: "Molotov Cocktail". Acrilíco sobre tela de Alexander Kosolapov, 1989

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Femen inventa a moda do feminismo machista



Dez e meia da matina e os jornalistas já se aglutinavam na porta do metrô Château Rouge. O bairro, conhecido pela concentração de imigrantes africanos, vive lotado e o movimento de lentes e microfones foi logo notado.
- O que vai acontecer? é manifestação?
- São as ucranianas do Femen.
-Ah, são umas que tiram a roupa? (pausa para a malícia) Vou ficar pra ver.
A reação é esperada. É com esse apelo que as meninas do Femen contam. “Não interessa porque eles olham. O importante é chamar a atenção”, diz Eloïse Bouton. Mas as frases pintadas pelo corpo parecem só servir para uma coisa: atrapalhar a apreciação sedenta dos machões.
Já passa das 11h quando as meninas chegam. Tiram as jaquetas e camisetas e descem a rua gritando “O Femen é o novo-feminismo”, “peladas e vencedoras”, “Liberdade, nudez” e por aí vai. Diferente do braço brasileiro, a turma francesa é até que bem colorida. Tem orientais, negras, árabes. Mas a comissão de frente é loira.
Além das poses pras câmeras e das gargalhadas dignas de propaganda de pasta de dente uma motosserra arrematou o fetichismo dessa manhã. Na porta da associação, a representante ucraniana Inna Shevchenko usou a ferramenta para arrebentar com duas ripas de madeira que travavam a porta do teatro Lavoir Moderne de Paris, que – reza a lenda – foi emprestado ao grupo.


Uma legião de homens vinha atrás. Lembrou os episódios em que a mulher Pêra aparece no centro de São Paulo pra fazer campanha política. Alguém pergunta sobre plano de governo?
Nada contra peitinhos à l’air. O problema é o gosto de mercadoria. Nada contra a motosserra, se a loiraça não pintasse sozinha uma cena tarantinesca. A questão também não é o termo “a-político”, mas a fraqueza do discurso pró-mulher; nem “neofeminismo”, desde que algo fosse proposto em relação aos “outros feminismos”.
Segundo Inna, a nudez plástica – que parece um grande clichê e um reforço caliente aos velhos hábitos machistas da sociedade – tem como objetivo mudar o olhar das pessoas sobre o corpo das mulheres. Na coletiva de Imprensa, ela diz que o negócio é ação. Que há muito blablabla e ninguém age. A ucraniana de 22 anos diz que o grupo vai montar um “exército nu” para “renovar o feminismo francês”. “Queremos parecer femininas e  ainda dizer algo”. De acordo com a ala francesa do movimento, “nós precisamos disso”. Eu acho que não.
Em uma entrevista ao Libération, jornal de esquerda na França, Inna sintetiza o pensamento do movimento: “queremos mostrar que as feministas não são velhas mulheres escondidas atrás de seus livros”. Simô de Bouvoir vomitou onde quer que esteja, Frida arrancou o bigode com a mão e eu deixei o meu crescer só de raiva.
Quando nesse mundo um movimento se fez sozinho, sem o auxílio de uma boa reflexão? Vamos começar a confundir movimento social, reivindicação, com viral de publicidade?
Em São Paulo, por exemplo, o pessoal do Banco Mundial da Genitália tá convidando uma galera a tirar a roupa para mostrar que orgão sexual não é bicho de sete cabeças. O discurso e as fotos são taxados de “agressivos”. Os três artistas envolvidos têm espalhado pela cidade cabines para fotografar a genitália alheia e assim, instigar a quebra dos tabus que rondam esse amontoado de pelos, pele e suas deliciosas terminações nervosas. O trio tem discurso, embasamento e a genitália fotografada nem precisa ser "bonitinha".
Já o Femen anuncia em Paris um centro de formação moral e física de soldadas da nudez. Recentemente, a ex-ativista Bruna Themis declarou ao Opera Mundi que o movimento não tem demandas políticas e ainda rejeita mulheres acima do peso. “O movimento no Brasil está sem propostas, sem perspectivas, sem embasamento teórico. O Femen Brazil está perdido, sem rumo algum”.
O que disse a Bruna deu pra desconfiar antes. E ver durante e depois. As demandas são mal delimitadas e têm a cara das propostas de governo russomânnicas: voz doce, sorrisinho de bom samaritano e zero conteúdo.
Quando jornalista aperta, o bicho pega. As ativistas que nunca se envolveram nem com política de bairro tremem na base se precisam entrar no assunto. Os olhinhos começam logo a buscar outro repórter, menos arteiro, pra salvá-las dali. No final, umas dizem que o movimento é completamente apolítico. Outras garantem que política tem tudo a ver e que quem oferecer apoio às causas (?) do Femen terá também o apoio da – agora oficial – associação. Um desencontro.
No Brasil, ou Brazil, já que falamos do Femen, Sara Winter – que seria simpatizante do marido exemplar que foi Hitler –  não se envolve em política. Mas seu assessor é candidato a vereador pelo PMN, em Santo André e cita o Femen como uma de suas atividades militantes.
No fim, mais importante do que entender o que realmente é (ou não é) o Femen é lutar contra a ideia de grife que esse “neo-feminismo” impõe. As mesmas frases. As mesmas flores no cabelo. O mesmo tipo físico. O Femen esvazia anos de militância, reflexão e resistência e reduz tudo a meia hora de show pra adultos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A exceção que confirma a regra


Peguei um trânsito desgraçado, dentro do 875-C, sentido Moema. Não andava nada na Faria Lima, pra lugar nenhum. Não tardei a descobrir porquê. Havia uma Blazer azul escura, com os vidros estilhaçados e a lataria escandalosamente perfurada. Ao lado, policiais da ROCAM e da ROTA posavam de escopetas e pistolas em riste, ostentando uma presa humana desfigurada. Jazia ao lado de seus coturnos, um rapaz de chinelo, "cor padrão" como a minha, sem camisa, de bermuda surrada. Estava coberto de sangue e, de dentro do ônibus parado, não era difícil identificar pelo menos cinco furos de bala do pescoço pra cima. Vi, olhei pra frente, não olhei mais. Nem precisava: um registro fotográfico da cena me vem à cabeça mesmo hoje, uns quatro anos, três defuntos, um amor verdadeiro e uma vida em Paris depois.

Quando desci do ônibus, vi outra agitação policial, um pouco pra frente. Para minha surpresa, meu amigo Paul estava cercado por motoqueiros da ROCAM. Ele estava meio desorientado. Pelo que entendi, haviam-lhe roubado a carteira, as chaves do carro, o documento, tudo. Eu comentei qualquer coisa como "a bruxa está à solta, heim?" e falei do rapaz morto dez, quinze minutos antes. Nisso, um dos policiais se empolgou e veio me contar a história. O homem havia tentado um sequestro relâmpago na Blazer azul, mas foi flagrado pelos policiais entrando no carro. Os policiais entraram em perseguição e foram surpreendidos por intenso tiroteio. Revidaram, mataram o suspeito sem atingir uma bala que fosse na dona do carro. "Uma bela ação!", exultou o fardado.

Uma colega dele se aproximou, sorrindo e propôs pra mim e pro Paul: "Adivinha o que esse aqui (o outro polícia) vai fazer quando chegar à delegacia!" Sei lá; vai cagar, comer coxinha, dar o furico. Pra mim tanto faz. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele respondeu: "Vou pedir pra ver o vagabundo! A coisa que eu mais gosto é ver vagabundo desfigurado!"

Só contei isso tudo porque tenho uma opinião muito específica sobre o caso do "Estrebucha, filho da puta!" que a Folha publicou na semana passada. O vídeo, que mostra um homem morrer aos pés da polícia, suscitou algumas reações efusivas. Dizem que vão dar uma punição exemplar, que os culpados serão encontrados, que esforços não serão poupados para resolver o caso; o comandante da PM pediu desculpas pra família do coitado ("cor padrão", diga-se de passagem) que foi conduzido ao outro lado sob brados de "estrebucha, filho da puta". Claro que acho que isso tudo tem que acontecer de fato. Não sou contra a punição. Mas que ela não mascare o que é fundamental: o comportamento sádico, psicótico, racista e economicamente desbaratado da Polícia Militar de São Paulo é endêmico, epidêmico, apoiado e incentivado pelo Estado. "Estrebucha, filho da puta!" é regra no nosso Estado de Exceção e não exceção no nosso Estado de Direito.

sábado, 20 de agosto de 2011

A Copa do mundo (não) é nossa

Bom, confesso que ler o jornal de manhã não me costuma ser animador. Ainda mais quando você está em uma cidade onde o metrô tem hora pra chegar, a prefeita vai trabalhar de bicicleta e os carros param sempre que você lança um discreto olhar para a faixa de pedestres. Kassab, Sérgio Cabral, Wagner Rossi, gente trabalhada na arte de malufar... Valei-me minha nossa senhora do pagante de impostos! Essa galera complica meu início de dia e meus planos de, logo mais, voltar para o Brasil.

Mas, preciso confessar que, às vezes, um vento bate jogando meus cachos para o alto, algumas folhinhas voam como um clichê de Hollywood e eu cedo à esperança. Digo meus porquês:

Nesta semana, o Brasil foi citado várias vezes nos noticiários parisienses de rádio (estamos sem TV) pela tentativa de Dilma de combater à corrupção nos ministérios do seu governo.

Na boa, você pode nem ter votado na mulher, pode nunca ter gostado do Lula, pode odiar qualquer menção à cor vermelha ou nunca ter deixado sua barba (ou a do seu digníssimo) crescer, mas, certamente, se tem algum bom senso, vai apoiar a limpeza do Planalto ou, pelo menos, a tentativa de.

Tem mais: as torcidas organizadas de todo o país se reuniram para montar um protesto que esguela um belo “Fora Ricardo Teixeira”. ( Presidente da CBF e mau defunto para o qual Dilma não gasta uma só vela). O barulho é da Confederação Nacional das Torcidas Organizadas que tem menos de um ano e é liderada por Wilder Rocha, também diretor da corintiana Gaviões da Fiel. O movimento, ainda pouco comentado nos sites brasileiros, escolheu uma rodada repleta de clássicos para exibir nas arquibancadas faixas com a frase “Copa com prestação de contas e sem Ricardo Teixeira”. Ou seja: mandou às favas a rivalidade em prol de algo bem maior.

A ideia mesmo é que o Ricardão (muito bem perfilado na Piauí de Julho, por sinal) assista aos jogos de 2014 diretamente de casa - xilindró me parece muita utopia – mas, enfiado em um bermudão, de chinelos, sem a chance de fazer politicagem e maus negócios com a nossa bola.

O drama é claro; com os crimes nas licitações, o tráfico de influências óbvio e declarado do presidente da CBF e os gastos federais capazes de inventar cifras como as dos Jogos do Pan, que tiveram um estouro orçamentário de 1.589% em 2007, essa Copa vai ser de qualquer um, menos nossa.

Boleiros da várzea, guris das escolhinhas de futebol, a mulherada das arquibancadas ou meu avô de 93 anos: ninguém vai conseguir despender a grana que este bilhete vai custar. É, pobres humanos, mortais, suscetíveis a tantas mazelas, a Copa não é de vocês. Aos que acham que protestar contra isso é uma perda de tempo, meu sincero “sinto muito”.

A decisão das organizadas de esquecerem por um momento a rivalidade por uma Copa mais transparente, reativa, de certa forma, uma politização ausente há muito tempo entre nós. E não torça o nariz porque falo que isso aconteceu no futebol! O molejo todo merece atenção, além de adeptos. Quem sabe, hora dessas, a gente não acorda pra ler o jornal e redescobre um país com menos lobistas escondidos em salas de ministérios, menos gente pedindo demissão de cargo público para não se queimar ainda mais, menos sujeira na bola, no INSS, no SUS, nas prefeituras, no imposto de renda do amigo e consegue até levar nossa molecada pra ver uns jogos em 2014 (a preços populares), hein?!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Kassab é fresquinho porque vende mais


"(O Kassab) é outro inimigo", disse o Racional Mano Brown à Folha de S. Paulo desta quinta-feira. "Desde que assumiu, o número de shows dos Racionais diminuiu muito. Tudo que ele faz hoje é contra a cultura negra, não deixa o povo tomar a frente. É um governo racista do caralho". Ainda bem que ele disse. Kassab é isso mesmo e muito mais. É um racista de forte contorno autoritário.

Enquanto diz ser inconcebível que não haja um estacionamento para o Teatro Municipal e agradece a São Pedro quando os mendigos não morrem de frio, Kassab economiza no ônibus, na urbanização de favelas, na canalização de córregos, na construção e reforma de escolas. Foi assim no primeiro semestre deste ano: seu governo utilizou menos de 20% das verba direcionada a essas obras. Isso porque, pelo segundo ano consecutivo, a receita do município cresceu acima da inflação.

Quem mora em São Paulo tem a nítida sensação de que a cidade está lá por empréstimo. Grafite tem que ser autorizado. Artista de rua é proibido. Skate é mau-visto. Violão na praça, caso de polícia. Usuário de droga é empurrado pros cantos. Tudo isso, debaixo das lâmpadas - que, pelo mesmo corte orçamentário, mais escurecem que iluminam - da metrópole. É uma cidade cujo dono é a Prefeitura que, uma vez ao ano, empresta seu espaço à população, na Virada Cultural. Tem hora pra começar, hora pra terminar e é só. É uma piada pensar que ele busca inspiração em Paris (passa mais tempo aqui do que no Brasil)... Aqui é tudo ao contrário: músico em cada esquina, grafite tem uma rua própria, transporte de qualidade a baixo custo pela cidade inteira, enfim. Não lembra São Paulo em nada.

Tudo isso faz parte da ideologia torpe do Kassab, o político apolítico. Mas a mais grave e mais sorrateira de todas as ideologias do prefeito é a não-ideologia. Ele fez um diagnóstico preciso do carreirismo na política brasileira. Após sucessivos Tiriricas, Clodovis e Franks Aguiares da vida, ele percebeu que há um político para cada ocasião. Acertando o "timing", o "targeting" e o "sense of opportunity", pode-se vender qualquer marca política no Brasil. O único empecilho para isso é o saudosismo de quem ainda preza por uma ideologia - o direitista e o esquerdista convictos. Mas, mesmo eles são elegíveis se o momento for propício. Para a manutenção do poder na terra do fisiologismo e do carreirismo político, basta criar um guarda-chuva que comporte qualquer ideologia. Se for preciso ter um comunista indignado, voilà. Se for o caso de um Bolsonaro, alguém que fale pelas tradições da família, contra homossexualidade, negritude e outras promiscuidades, voilà também. É tudo uma questão de conhecer o público alvo... Digo, público eleitor.

A verdade é que o PSD não é um partido político. É um varejão com produtos para todos os gostos. Neste varejão, o Kassab é um gigolô; e seus políticos apolíticos, suas putas. Essa aberração é um vírus oportunista que enxergou que a fragilidade do corpo político brasileiro reside no fato de que a propaganda se sobrepõe à discussão política. Então, pra que discussão política, se a gente pode encerrar qualquer eleição no espaço publici-otário? Posso fazer um lixo de governo - literalmente, já que sob Kassab, os catadores perderam dinheiro e ganharam jornada - e me dar nota dez. Posso chamar um "Dia do Orgulho Hétero" de "só mais um dia" e depois dizer, didaticamente, que as minorias têm direito a manifestação por causa de uma história de opressão etc, etc, etc. Basta sacar a maré do meu "target".

Abrir mão da ideologia é um luxo ao qual nenhum formador de opinião pode se dar. Muito menos alguém que tem um cargo executivo. Um político que abandona a ideologia para fazer-se aprazível a qualquer eleitor é um homem sem caráter, disposto a comprometer todo o corpo democrático em nome de sua própria megalomania. Como bem definiu Mano Brown, é um inimigo. E esse, é melhor não subestimar.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Trabalho escravo não é aberração no Brasil


Bombou hoje no Facebook a história do trabalho escravo flagrado na fábrica da Zara. Aqui, de longe, achei que a coisa tivesse estourado via PF, em um dos muitos mutirões que o país tem feito desde o primeiro Governo Lula, para combater essa, que é a mais desumana de todas as práticas. O amigo Gil Alessi, que trabalha na produção do programa A Liga, da TV Bandeirantes, esclareceu que a denúncia fez parte, entre muitas outras, do episódio sobre escravidão contemporânea. Ele fez questão de frisar muito bem, que uma obra do Governo do Estado de São Paulo estava entre as promotoras de trabalho escravo.

Isso não surpreende. Não só por se tratar do PSDB, que gosta tanto de povo quanto eu gosto de tucano. Mas porque, como o próprio programa mostra, a escravidão no Brasil é instituição. Uma frase do advogado que foi ouvido pela reportagem deixa isso claro: “o infrator é notificado e obrigado a regularizar e indenizar todos os trabalhadores”. Cansado, o advogado vai além e diz que luta há anos para que os alojamentos flagrados como senzalas (o termo sou eu que aplico, mas acho que dentro do contexto vale) sejam estruturados, desapropriados e entregues aos trabalhadores. Tudo a custo do patrão. “Seria uma grande vitória”. De fato. Mas está longe de desestruturar a escravidão.

Se um trabalhador escravo insurgir contra seu senhor (voltando à história do contexto, ‘patrão’ aqui não cola, certo?) e matar o desgraçado, o que acontece? Trinta anos de reclusão por homicídio doloso, família desamparada, vida destroçada. Se alguém ajudar então, pode colocar formação de quadrilha na conta da delegacia.

Sinceramente? Promover trabalho escravo, pra mim, é crime pra paredão. Não existe desculpa nenhuma. Mas eu ainda sou um humanista e acho que o assassinato estatal não resolve nenhum problema. Além disso, como também mostrou A Liga, ironicamente, quem acabaria no paredão seriam os trabalhadores. Quem viu o programa com atenção percebeu que a bomba da Zara não estourou na mão da Zara, mas de uma coitada de uma boliviana que administra uma confecção no Bom Retiro. Ela, a responsável por contratar os coitados que ganham 7 reais por peça confeccionada – e pagam preço de loja se derem ponto sem nó –, vai ter que se atirar sobre a legislação trabalhista brasileira e regularizar seu negócio. O presidente da Zara? Esse, ninguém sabe, ninguém viu. Agora, se tivesse o paredão do trabalho escravo, adivinha quem estaria lá, de olhos vendados e cigarro tremilicando nos beiços? Garanto que não seria um branco de terno e gravata.

Então, concluindo: a escravidão no Brasil não é uma aberração do nosso capitalismo subdesenvolvido. É uma instituição muito bem aparada por uma teia legislativa que está longe de se desfazer. Enquanto os senhores de engenho contemporâneos tiverem a complacência da Justiça, eles certamente entenderão que o trabalho escravo vale muito a pena. Afinal, que pena?


Trecho do programa que mostra as conclusões da reportagem. Para ver a íntegra, clique aqui.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A história que a história esqueceu


Eis que aparece no texto da lição de francês: “Chacun devrait acheter des produits de commerce équitable (todos deviam comprar produtos do ‘comércio justo’)”. E a professora emenda: “Isso é muito interessante”. E explica que o tal do comércio justo é uma ferramenta muito interessante pela qual os países ricos ajudam a desenvolver a economia dos pobres. “É assim”, ela exemplifica. “A gente paga mais caro nos cafés colombiano e brasileiro, por exemplo, porque o valor da compra vai direto para o bolso dos pequenos produtores e ajuda no desenvolvimento desses países”.

Ça marche (funciona), como diriam os franceses. E além disso, os produtores que entram no processo de “fair trade”, como é mais conhecido o termo no mundo, devem assumir um compromisso ecológico: evitar agrotóxicos e processos danosos ao meio ambiente. É bom? É bom. É uma medida de reparação de desigualdades. Como todas as medidas de reparação, merece críticas. Principalmente quando quem as promove prefere que as grandes reparações sejam feitas fora do seu quintal. Quer dizer, é bonitinho que a França ajude os produtores “econológicos” do Terceiro Mundo; mesmo que quase toda sua energia seja de matriz nuclear.

Mas não escrevo para criticar uma prática comercial sustentável. O problema – que pode deixar este texto meio insólito – foi um certo tom entre os “desenvolvidos” da sala (tínhamos duas americanas entre nós), quando o assunto veio à tona. Havia um quê de assistencialismo no ar. Um pouco de pena, um pouco de fatalismo... Era como se nós, pseudossubdesenvolvidos, fôssemos subdesenvolvidos por obra do destino. Como se tivéssemos uma doença incurável ou padecêssemos de uma maldição divina. Uma frase específica da professora, que não tem nada de ignorante – pausa para o currículo: foi jornalista durante anos, cobriu duas guerras civis e viveu na África –, me deixou profundamente consternado: “É melhor do que simplesmente repassar dinheiro” .

Discordo. Nós não precisamos aprender a pescar. Também não precisamos de mesada. Não somos crianças no plano da geopolítica global. Somos vítimas de políticas predatórias, isso sim. O Brasil nasceu pobre? Coisa nenhuma, foi empobrecido. E o Haiti, então? O Haiti exigiu dinheiro da França, me lembro bem. Foi o ex-presidente deposto Jean-Bertrand Aristide quem protocolou que a ex-metrópole deveria ressarcir o país em nada menos que US$ 21.685.135.571,48. A cifra seria a soma corrigida do valor que o Haiti pagou à França para ver legitimada sua independência, obtida de forma revolucionária. Durante séculos, a primeira república negra revolucionária foi oprimida por embargo cruel, promovido pela França, pela Inglaterra e, posteriormente, pelos Estados Unidos. Hoje, ele é o país mais pobre das Américas. Errado: é o país mais empobrecido das Américas. O Haiti é uma vítima da colonização francesa. Como Ruanda, Senegal, Argélia. Como Brasil, Angola, Moçambique, Timor são vítimas de Portugal. Como o México foi vítima da Espanha e, mais tarde, dos Estados Unidos.

Acho curioso este aspecto da mente colonizadora, que me remete imediatamente ao argumento dos inimigos das ações afirmativas aí no Brasil: a alienação da responsabilidade. Todo mundo reconhece as atrocidades do passado, todo mundo acha muito feio, muito triste, mas ninguém quer assumir o que foi feito. “Não posso assumir a culpa pelo erro de alguém que nem está mais aqui”. Assumir a culpa, não. Mas gozar das benesses daqueles crimes todo mundo quer. Ou alguém vai devolver para o Egito a esfinge milenar que ostenta, no Museu do Louvre, a placa “trouvée a Tanis” (“encontrada em Tânis”, mas podia estar escrito “Saqueada em Tânis”)? Ou alguém vai deixar de estudar na USP só porque o pretinho – que é mais dedicado, paga os mesmos impostos e não tem as mesmas condições – não consegue entrar.

Inverto a pergunta: por que nós, negros e terceiro mundanos, temos que pagar pelos erros dos SEUS ancestrais? Bom, só para constar: estou aprendendo um monte na França, crescendo de verdade, estou admirado com todas as maravilhas que este povo – que em geral é muito simpático, diga-se de passagem – tem a oferecer. Acho que, em termos políticos, sociais e, mesmo culturais, temos muito a aprender com eles. E a gente ainda vai falar bastante disso tudo neste espacinho aqui. Este texto foi um desabafo, já que nem eu nem a Vanessa tivemos francês suficiente para travar essa discussão na sala de aula...

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